MARCEL PROUST - E minha busca do tempo perdido


Em busca do tempo perdido


O Narrador me transporta à antiga casa cinza de sua tia Leonie, no vilarejo de Combray, com seus quartos e sala, lindo jardim com todas as flores de verão, os portões por onde se ia até a praça e daí, aos dois caminhos:
um que conduzia a Tansoville, onde estão as flores dos jardins de Swann e o outro para os lados de Guermantes, onde o rio Vivonne, no seu eterno correr, abriga, tal qual nos quadros de Monet, suas lindas ninféias...

Talvez este se torne o meu novo livro de cabeceira onde terei que ler e reler e anotar com caneta aquilo que voltarei sempre a ler em um momento oportuno. Como agora em um pálido dia, transcrevo trechos abaixo: "Vamos! Vamos! Vamos!"


(...) insinuava em mim duas suspeitas terrivelmente dolorosas. A primeira era de que a minha vida tinha já começado (quando todos os dias me considerava como que no limiar da minha vida ainda intacta, e que só começaria no dia seguinte de manhã), mais ainda, que o que se ia seguir não seria muito diferente do antecedente. A segunda suspeita, que a bem dizer não passava de outra forma da primeira, era de que não estava situado fora do Tempo, antes sujeito às suas leis (…) Teoricamente sabe-se que a terra gira, mas de facto não damos por isso, o chão que pisamos parece que não se mexe e vivemos tranquilos.
É o que se passa com o Tempo na vida.




Quando subia para me deitar, meu único consolo era que mamãe viria beijar-me na cama. Mas tão pouco durava aquilo, tão depressa descia ela, que o momento em que a ouvia subir a escada e quando passava pelo corredor de porta dupla o leve frêmito de seu vestido de jardim, de musselina branca , com pequenos festões de palha trançada, era para mim um momento doloroso. Anunciava aquele que viria depois, em que ela me deixaria, voltando para baixo. Assim, aquela despedida de que tanto gostava chegava eu a desejar que viesse o mais tarde possível, para que se prolongasse o tempo de espera em que mamãe ainda não aparecia. As vezes, quando depois de me haver beijado, abria a porta para partir, desejava dizer-lhe: "beija-me ainda outra vez"





Já homem pela covardia, eu fazia o que todos nós fazemos, uma vez que somos grandes, quando há diante de nós sofrimentos e injustiças: não queremos vê-los; ia soluçar lá no alto da casa, ao lado da sala de estudos, sob os telhados, numa pequena peça que cheirava a íris, também perfumada por uma groselheira silvestre que crescera fora entre as pedras da muralha e passava  um ramo florido pela janela entreaberta. Destinada a um uso mais especial e mais vulgar, aquela peça, de onde se tinha vista, de dia, até o torreão de Roussainville-dePin, me serviu por muito tempo de refúgio, sem dúvida por ser a única que me era permitido fechar a chave para todas as minhas ocupações que demandavam uma inviolável solidão: a leitura, a cisma, as lágrimas e a voluptuosidade.




Muitos anos fazia que, de Combray, tudo quanto não fosse  o teatro e o drama do meu deitar não mais existia para mim, quando por um dia de inverno, ao voltar para casa, vendo minha mãe que eu tinha frio, ofereceu-me chá, coisa que era contra os meus hábitos. A principio recusei, mas não sei por que, terminei aceitando. Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheio chamados madalenas e que parecem moldados na valsa estriada de uma concha de S. Tiago.



Trata de conservar sempre um pedaço de céu acima da tua vida, meu menino - acrescentava, voltando-se para mim - Tens uma bela alma, de qualidade rara, uma natureza de artista, não a deixes em falta do que lhe é preciso




 Tanto mais agradáveis foram meus passeios naquele outono porque os dava depois de ter passado muitas horas com um livro.

 Quando me cansava de ler toda a manhã na sala, lançava o plaid aos ombros e saia: meu corpo, obrigado por muito tempo a conservar-se imóvel, mas que se fora carregando de animação e 

velocidade acumuladas, precisava logo, como um pião que se solta, despendê-las em todas as direções. Os muros das casas, a sebe de Tansonville, as árvores do bosque de Roussainville, os matagais, recebiam golpes de guarda-chuva ou de bengala, ouviam gritos alegres, que não passavam, uns e outros, de idéias confusas que me exaltavam e ainda não haviam alcançado o repouso de plena claridade, preferindo, a um lento e penoso esclarecimento, o prazer de uma derivação mais fácil para um escape imediato. 


Marcel Proust




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